Falar das nossas dores como povo negro é um exercício dos mais desafiadores. Porém, contrariamente à tendência propagandeada como saudável de esquecer o que passou, olhar para frente e superar o sofrimento, o caminho da cura se mostra diferente. Exige que olhemos para o passado com atenção, mas não como algo distante de nós. Pede que o revisitemos tantas vezes quanto suficiente para que os danos ali operados sejam permanentemente desfeitos. Um destes problemas sempre apontados pelos estudiosos do nosso povo é a crônica autodepreciação e dificuldade de diálogo saudável entre nós.
A psicóloga dra. Joy DeGruy em Síndrome Pós-Traumática do Escravizado expõe as raízes do comportamento ainda arraigado entre nós de insulto e depreciação, e sobretudo de insulto racial. Ela parte da própria experiência como criança negra que ouvia tais insultos de outras crianças negras e não entendia a razão. Porque machucamos um ao outro usando nossa identidade como insulto? Antes de mais nada ela descobriu que havia muita dor por trás dessas falas que serviram para arrancar nosso senso de identidade. Esta atitude foi forjada durante os mais de 388 anos de escravidão legal quando os brancos incutiram em nós à força a ideia de que éramos subumanos. O peso dessa violência nunca foi observado com o cuidado, a coragem, a duração e o remédio adequado porque falar sobre essas dores significa intensificá-las, e a cura nunca se apresenta com uma mera visita rápida à ferida. Tivemos que fingir, apesar de tudo indicar o contrário, que o fim formal da escravidão realmente rompeu a dinâmica de violações extremas sob as quais vivíamos, quando na verdade elas se mantiveram sob outras formas. Agora com o ônus maior de não mais ser possível identificar a injustiça, tivemos de desenvolver uma espécie de cegueira social que, ao mesmo tempo, nos protegia da completa loucura e colaborava com a perpetuação das injúrias. Ver nitidamente o grau das injustiças e traumas a que éramos submetidos era tarefa áspera demais que nos teria levado ao colapso: vendidos, espancados, mutilados, “reproduzidos”, linchados, estuprados, estas eram as causas dos traumas. Sem qualquer chance de tratá-los, seguimos proibidos legalmente de estudar, de possuir terras, de trabalhar na maioria dos empregos, e por muito tempo continuamos escravizados mesmo após a libertação formal, já que um número absurdo de leis excludentes tornavam a vida “livre” quase impossível.
Dra. Joy Angela DeGruy
Desse modo, do nosso sequestro até as Américas passando pela “libertação” formal e até hoje, a criação de novos traumas não cessou e segue constante. A administração da carnificina antes gerida por cada escravizador branco foi passada para instituições estatais, sobretudo a polícia, que se especializou em torturar, prender e matar os filhos, netos e bisnetos dos escravizados. Enquanto o legislativo se ocupa em manter as leis o mais próximo possível de um estado escravocrata; o judiciário, de garantir as mais severas penas aos nossos e de cobrir o quanto possível os crimes dos brancos; o mercado trata de usar da nossa energia e criatividade em troca da miséria do salário mínimo. Com tudo isso contra nós, como teríamos a chance de nos curar? Dessa forma, a escravidão não é passado, ela é atuante hoje, como era há 500 anos; o que mudou foi apenas a forma e o acréscimo de camadas em que ela se oculta de nossa percepção cotidiana, já que é combinada com nossa deseducação pelos meios formais do estado.
Acompanhando esse diagnóstico a autora apresenta a etiologia do pessimismo e auto depreciação no comportamento dos negros na diáspora. Tal pessimismo atinge os filhos diretamente. O rebaixamento dos filhos frente aos brancos era uma forma de protegê-los da venda e afastamento dos pais. Ela chama essa atitude de “adaptação apropriada à vida em um ambiente hostil”. Quão apegado um pai(mãe) negra pode ser a um filho(a) numa circunstância tão incerta e cruel? Quanto do seu coração ele(ela) pode entregar a este filho que pode desaparecer a qualquer momento porque eles podem vender ou matar? Segundo ela, nunca desaprendemos a agir assim ou nunca ao menos conversamos sobre esse dano porque ainda não nos sentimos de fato livres para ter segurança para tal. Por isso, quando um branco elogiar seu filho, sua esposa ou esposo apenas finalize ali mesmo com: obrigado!
Vários destes comportamentos nós não sabemos mais o motivo, porém eles permanecem presos e atuantes devido à epigenética. Algumas pesquisas em epigenética utilizando ratos demonstraram que sua exposição ao cheiro de hortelã acompanhado de um sinal elétrico desagradável os conduziu a rejeitar o cheiro. Porém, os filhos destes ratos demonstraram a mesma aversão apesar de não terem sido expostos ao cheiro. E também os netos dos primeiros ratos apresentaram a mesma aversão. O que leva à conclusão já assumida na Constelação Zulu de que o trauma viaja através do DNA, independente das circunstâncias externas. Este é o principal motivo porque precisamos nos curar profundamente, caso contrário continuaremos a cadeia de transmissão de danos para as próximas gerações. Esta cura só se dará coletivamente, não é algo que se possa fazer enquanto indivíduo, independentemente um do outro.
Ela explica que os espancamentos de filhos negros durante a escravidão por pais negros, no fundo, era uma forma de poupá-los do espancamento que, se viesse dos brancos, os mataria, numa possível explosão de fúria. Os pais precisavam quebrar qualquer tipo de resistência no filho que pudesse se revelar com os brancos, cuja reação levaria à morte daquele filho, para que ele nunca os enfrentasse. Com o passar dos anos normalizamos esse comportamento, porém sem entender que nossos pais estavam psiquicamente destruídos por precisar agir assim.
A desordem de estresse pós-traumático é uma forma de trauma que pode ocorrer como resultado de um único trauma que pode ter sido experimentado direta ou indiretamente. No entanto, quando falamos da experiência negra contemporânea lidamos nada menos que com gerações de traumas que nunca foram sequer abordados. Para Degruy “não podemos nos dar ao luxo de engolir toda a cultura porque há veneno nos biscoitos”. Não estamos acrescentando apenas grandiosos, maravilhosos costumes e normas culturais, também adicionamos em adaptação ao trauma.
É difícil se curar quando você ainda está sendo machucado, e nós estamos sendo violados em todos os níveis imagináveis. Não é impossível porque nossos ancestrais conseguiram passar pela escravidão, portanto também podemos criar um mundo melhor para nossos filhos. Aqueles que acreditaram por 500 anos que um dia não seríamos escravizados são os responsáveis por estarmos aqui agora. Somos o resultado concreto de não um, mas uma vastidão de milagres que nos manteve vivos até hoje.
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